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O Processo de Discernimento e a escolha existencial de Dom Bosco pelos jovens pobres e abandonados

A mensagem de Nossa Senhora, ao menino João Bosco, no famoso Sonho dos 9 anos, ressoa como um aviso do processo de discernimento vocacional que deveria passar.
Dom Bosco é conhecido como Pai e mestre da juventude, mas para chegar à convicção interior de que deveria doar sua vida inteira aos jovens, sobretudo aos mais pobres e abandonados, precisou percorrer um itinerário de discernimento.

Somente ao percorrer esse itinerário, em busca do sentido mais profundo de sua vida, procurando compreender os sonhos, ouvindo as mediações, vivendo plenamente todas as oportunidades, recebidas em seu tempo e lugar, e se questionando profundamente, Dom Bosco conseguiu encontrar o verdadeiro sentido de sua vida e assim empregar todas as suas energias, até o último suspiro, aos seus jovens amados.

Esse singelo artigo tem por objetivo central apresentar o processo de discernimento que levou Dom Bosco a fazer sua escolha existencial pelos jovens pobres e abandonados.
A primeira parte trabalha os embasamentos teóricos sobre o discernimento e aplicabilidade do tema na vida de Dom Bosco. A segunda, analisa o processo que levou Dom Bosco à sua escolha existencial pelos jovens mais pobres e abandonados, incluindo o contexto socioespacial, vivido por ele em sua época. A terceira, apresenta a crise vivida por Dom Bosco, o “click” vocacional e sua resposta generosa, tendo como exemplo Jesus Cristo. E a quarta parte, despretensiosamente, dialogaremos a escolha existencial de Dom Bosco com a escolha da América Latina e Caribe, desde Medellin, e, de toda a Igreja com o Papa Francisco, que apresenta os pobres como “os destinatários preferidos de todo cristão” (Francisco, 2017).
Esperamos assim, contribuir para um mergulho, cada vez mais profundo, em nossa raiz carismática e eclesial, para que possamos, ainda hoje, aprender da vida de nosso Pai fundador, fiel discípulo do seguimento de Jesus Cristo, a dar a vida pelos mais pobres, fazendo de sua causa, a nossa bandeira de luta para a implementação da Civilização do amor.

1- O discernimento

O discernimento é, segundo Rupnik, uma realidade relacional, como o é a própria fé. De fato, a fé cristã é uma realidade relacional porque é Deus que se revela e se comunica como amor, e o amor pressupõe o reconhecimento de um “tu”. Deus é amor porque comunicação absoluta, eterna relacionalidade, tanto no ato primordial do amor recíproco das três pessoas divinas quanto na criação. Por isso, a experiência da relação livre que o homem experimenta no discernimento nunca é apenas relação entre homem e Deus, mas inclui a relação homem-homem e até mesmo homem-criação, pois entrar numa relação autêntica com Deus significa entrar nessa ótica do amor que é uma relação vinificadora com tudo o que existe.
Tornar própria essa visão significa captar e perceber todos os instrumentos dessa linda sinfonia que estão intrinsicamente sendo executados em harmonia, pois, ligam todas as partes da criação e fazem surgir a comunhão do ser com tudo o que existe.
Como todos esses instrumentos indicam o mesmo aspecto da realidade divina, sua presença nas coisas, nos objetos, na produção humana, infunde neles um novo significado, pelo qual cada coisa e cada ação é capaz de assumir um significado mais profundo. Assim, nos é “oferecida uma visão essencialmente sacramental do mundo pela qual, através das coisas, temos acesso à sua verdade” (Rupnik, 2004). Assim, o discernimento é a arte de compreender a si mesmo, levando em conta essa conjuntura de comunhão, pois se trata de “ver-se na unidade porque se vê com os olhos de Deus que vê a unidade de vida” (Rupnik, 2004).
O discernimento define-se, portanto, “como a arte por meio da qual o homem compreende a palavra que lhe foi dirigida e nessa palavra, abre-se o caminho que deve percorrer para responder à Palavra” (Rupnik, 2004). É o discernimento que nos ajuda a santificar o tempo que Deus nos pôs à disposição para que cumpramos nossa vocação, que é o amor, e portanto, para se realizar em Cristo, plena realização do amor em sua Páscoa que é a nossa Páscoa.
A vocação não é um fato automático, mas um processo de amadurecimento das relações, a partir daquela relação fundante com Deus. É, assim, um progressivo ver a si mesmo e a história com os olhos de Deus, um ver como Deus se realiza em mim e nos outros e como eu posso me dispor a essa obra de maneira a fazer parte da humanidade que Cristo assume, e por meio da qual assume também a criação, para entregar tudo ao Pai.
Portanto, o discernimento não é um cálculo, uma lógica dedutiva, nem uma discussão ou um enigma a ser desvendado, mas uma oração, a ascese constante da renúncia ao próprio querer, ao próprio pensamento, elaborando-o como se dependesse totalmente de mim, mas deixando-o totalmente livre. Cada etapa da vida tem sua crise própria e o discernimento se dá paulatinamente à caminhada, ou seja, à própria experiência. Inegavelmente, apenas encontramos respostas daquilo que nos perguntamos.
Dentro dessa perspectiva vê-se claramente o discernimento como um contínuo processo. Nem mesmo após a decisão tomada se pode cessar o discernimento, pois seu processo “virá como atitude contínua de autopurificação mesmo nos atos bons” (Libânio, 1977) e da indicação de Deus por onde seguir.
Sendo assim, a memória se torna, então, praticamente o caminho privilegiado da vida espiritual, pois é “a capacidade de desenvolver com cuidado e atenção para aprender a discernir e adquirir uma atitude constante de discernimento” (Rupnik, 2004). Por isso, o discernimento leva ao evento fundante, que é o amor de Deus e a sua vontade sobre nós. Baseia-se na integralidade cognoscitiva do Espírito Santo, até chegar a se ver com os olhos de Deus.

1.1 O discernimento na vida de Dom Bosco

Na vida de Dom Bosco, percebemos diferentes etapas de discernimento. Em cada uma delas, vivida intensamente, observamos seu itinerário pessoal em busca daquilo que é chamado a ser.
Lemoyne, nas Memórias Biográficas, descreve as etapas de discernimento de Dom Bosco:
“A esta altura não podemos deixar de fixar o nosso olhar no progressivo e racional suceder-se de vários e surpreendentes sonhos. Aos 9 anos, João Bosco tem conhecimento da grandiosa missão que lhe era confiada; aos 16, ouve a promessa dos meios materiais dispensáveis para acolher e manter os incontáveis jovens; aos 19, um mandato imperioso dá-lhe a entender que não é livre de aceitar a missão recebida; *aos 21, é lhe manifestada a classe de jovens de cujo bem espiritual deverá ocupar-se de modo especial; aos 22, é lhe indicada uma grande cidade, Turim, onde deverá iniciar seus trabalhos apostólicos e suas fundações. E, como veremos, não terminam aqui as misteriosas instruções que continuarão em intervalos até cumprir-se a obra de Deus”. (MB, vol.I, pág.46)
Revisitando a vida de Dom Bosco, identificamos que desde a primeira infância, deu provas de inclinação para o sacerdócio. O Sonho dos 9 anos ficou impresso em sua vida, mente e coração de tal forma que para ele significou sempre “aquela palavra” dita por Deus sobre si. Afirmava que o sonho de Murialdo estava gravado em sua memória e que havia até se renovado de maneira mais clara, e se “assim lhe quisesse dar fé, devia optar pelo estado eclesiástico, ao qual se sentia inclinado. Porém, a pouca fé nos sonhos, estilo de vida e certos hábitos do coração e a falta absoluta de virtudes necessárias para esse estado tornavam duvidosa e bastante difícil a decisão nesse sentido” (MO, 2008).
Tais palavras nos apresenta um jovem a caminho. Um jovem que busca as respostas para as perguntas essenciais de sua vida. Essa atitude de discernimento lhe era tão forte que irrompe em todas as dimensões de sua vida, chegando ao inconsciente e se manifestando nos sonhos. Os sonhos retificam a situação consciente e acrescenta material que ainda está lhe faltando. É só a partir do conhecimento da situação consciente que se pode descobrir que sinal dar aos conteúdos inconscientes.
Segundo Jung, os sonhos podem exprimir verdades e sentenças filosóficas, recordações, planos e antecipações. Afirma que:
“É extremamente raro que um sonho isolado e obscuro possa ser interpretado com razoável segurança… A interpretação só adquire uma relativa segurança numa série de sonhos, em que os sonhos posteriores vão corrigindo as incorreções contidas nas interpretações anteriores. Também é na série de sonhos que conteúdos e motivos básicos são reconhecidos com maior clareza…” (Jung, 2002)
Sendo assim, como Jung, entendemos uma série de sonhos não como uma sucessão fortuita de acontecimentos desconexos e isolados, mas como um processo de desenvolvimento e de organização que se desenrola segundo um plano bem elaborado e não através de um processo exclusivamente intelectual (Cf. Ferreira, 2011).
À essa altura, podemos nos perguntar, se a opção pelos jovens estava no inconsciente de João Bosco quando se questionava sobre sua vocação e se assim fosse, que papel ela teve em sua decisão vocacional. Em meados da década de 1830, aos 16 anos, a opção definitiva pelos jovens ficava como algo que pertencia ao futuro. Dom Bosco, diz-nos nas Memórias do Oratório, que aos 10 anos já estava empenhado no apostolado juvenil compatível com sua idade. Ao longo dos anos de estudo em Chieri, o oratório improvisado e o “ministério” entre os colegas eram um compromisso sério de sua parte. Mais ainda, as imagens do sonho vocacional são símbolos do ministério sacerdotal em favor dos jovens. A vocação sacerdotal, sugestão direta do sonho, foi direcionada à opção pelos jovens (Lenti, 2012).
Aos 19 anos, em meio a um sério conflito interior a fim de decidir a própria vocação, João Bosco tem um sonho, o do mandato imperioso, onde o próprio Jesus o manda se colocar à frente dos meninos e guiá-los (MB I, 123). Esse sonho significou para João, sem sombra de dúvidas, a confirmação de que o cuidado com a juventude não era um capricho seu, mas uma missão que o próprio Deus havia lhe dado.

2- A escolha existencial pelos jovens pobres e abandonados

Mesmo com a certeza do sacerdócio e do trabalho com os jovens, ainda havia, uma inquietação interior em Dom Bosco: qual rumo tomar em sua vida após sua ordenação sacerdotal sem excluir os jovens de suas escolhas? Com quais jovens trabalhar?
Estamos em Chieri, no ano de 1841, aos 05 de junho, quando João Bosco fez sua ordenação sacerdotal. Ouvindo os conselhos de Pe.Cafasso, seu diretor espiritual, fez a opção de prosseguir os estudos de moral e pregação no Colégio Eclesiástico em Turim. Assim, em 3 de novembro do mesmo ano, o neossacerdote afirma que seguiu “prazerosamente o sábio conselho” (MO, 2008) e ingressou no Colégio para aperfeiçoar seus estudos.
Numa passagem das Memórias do Oratório (2008, pg117), Dom Bosco escreve sobre sua experiência no Colégio: “Nos nossos seminários estuda-se somente a dogmática especulativa; da moral estudam apenas as questões disputadas. Nele, aprende-se a ser padre”.
O dia dos jovens sacerdotes eram estruturados sobre duas conferências: uma de manhã com o padre Guala, e a segunda à noite com padre Cafasso (Bosco, 1993). A finalidade das conferências não era apresentar teorias teológicas, mas estruturar as experiências cotidianas que os jovens sacerdotes presenciavam em suas ações pastorais.
No restante do dia, os sacerdotes exerciam o ministério no ambiente da cidade tais como hospitais, prisões, institutos de beneficência, mansões, casas populares, assistência aos doentes e idosos. Se o Colégio Eclesiástico contribuiu decisivamente na formação sacerdotal de Dom Bosco, a experiência sob a orientação de padre Cafasso foi nova e relevante. Teve, de fato, o caráter de uma segunda conversão. (Lenti, 2012)
Dom Bosco encontrou em Cafasso o pai bom e o guia seguro para chegar à maturidade humano- espiritual. “Todas as feridas, confusões desde a infância, adolescência e juventude foram enfim curadas” (Lenti, 2011), conseguindo assim paz de espírito, direção e liberdade.
No Colégio, com Cafasso, Dom Bosco alcançou a maturidade teológica e vocacional, aprendendo por meio de diversos ministérios sacerdotais que o levaram à descoberta de uma determinada categoria de jovens aos quais se sentia pessoalmente chamado. Foi o momento do “click” vocacional de sua vida, em que sob a direção de Cafasso, ele fez a opção definitiva pelos jovens pobres e abandonados.
João passou três anos providenciais no Colégio Eclesiástico. Não apenas enriqueceram sua mente com um cabedal de conhecimentos preciosos, mas também e principalmente porque o puseram em contato com as misérias, cujo conhecimento serviu para orientar definitivamente sua vocação de pai da juventude, sobretudo à juventude em situação de risco na Turim dos meados do século XIX (Lenti, 2012).

2.1- Contexto Sócio espacial

Qual foi a Turim encontrada por Dom Bosco ao chegar no Colégio Eclesiástico e que se tornou o cenário de sua segunda conversão? A população de Turim viveu um notável crescimento demográfico após as guerras napoleônicas na Itália e na Europa. Mas, o movimento migratório a Turim se deu, principalmente, em função da Revolução Industrial.
A decadência da população rural, devido a diminuição das propriedades familiares, paralela ao crescimento de grandes propriedades e de trabalhadores assalariados, desencadeou um movimento migratório de marcha para a cidade em busca da sobrevivência, gerando um rápido crescimento urbano sem a devida infraestrutura.
Muitos desses migrantes, mesmo não conseguindo emprego nas pequenas indústrias, permaneciam na cidade porque não tinham para onde retornar. Alojavam-se sobretudo nos bairros mais pobres que surgiram ao longo dos rios Dora e Pó (Lenti, 2012).
Turim, nessa época era uma cidade que crescia rapidamente e atraía para si uma multidão de meninos pobres e de moços contratados pelas empresas construtoras. Eram principalmente trabalhadores manuais, serventes de pedreiro, marceneiros principiantes.
“Dormiam onde podiam, quase sempre miseravelmente, em grupos de cinco ou seis em porões ou em sótãos insalubres. Mas esses ao menos formavam um exército de trabalhadores. O pior era o que se via ao lado deles: uma multidão de meninos abandonados, ociosos, que fervilhavam quase por toda a parte, nas imediações da cidadela, ao longo do Rio Pó, nos terrenos baldios que aguardavam construções, meninos abandonados pelos pais ou por eles instigados à mendicância…” (Auffray, 1946).
Desde as primeiras semanas que esteve no Colégio Eclesiástico, Dom Bosco pôde de tocar com suas próprias mãos o estado de abandono moral em que se encontrava a maior parte da juventude da classe operária. Dedicou-se ao ministério dos jovens que andavam pelas ruas da cidade e que, com frequência, encontrava nas prisões. Lenti, ressalta que, assim foram assentadas “as bases da espiritualidade Salesiana que o fundador incorporaria mais tarde nas Constituições e deixaria em legado aos seus filhos e filhas espirituais” (2012).

2.1.2 Jovens pobres e abandonados

Quem eram os jovens pobres e abandonados que Dom Bosco conheceu e que chamaram sua atenção desde que chegou a Turim?
Desde sua chegada a Turim, percebeu a diferença existente entre os jovens pobres camponeses dos Becchi, os pobres estudantes de Chieri com a nova – para ele – pobreza encontrada nos jovens de Turim. Eram, portanto, jovens locais, que viviam nos subúrbios dos bairros ao norte de Turim, tentando sobreviver com qualquer meio que lhes fosse oferecido; ou meninos migrantes temporários, empregados nas construções, sem condições dignas de trabalho. Todos eles eram jovens em situação de risco.
Dom Bosco, em Memórias do Oratório, ressalta que, de fato, muitos deles estiveram na prisão ou corriam o risco de ir para ela. Na verdade, se tratava de “jovens pertencentes à categoria designada na imprensa do tempo como pobres e abandonados. Todos os dias, mais de mil meninos e jovens aglomeravam-se pelos arredores da praça e do mercado da Porta Palácio, à espera de serem contratados ou simplesmente ficavam circulando…”. (Lenti, 2012).
Assim, submetiam-se a explorações de todos os tipos e ficavam expostos aos perigos físicos e morais. Grandes eram os índices de delinquência, de bandos juvenis, de analfabetismo e castigos (Lenti,2012). “Essa situação de risco físico e moral explica a praxe de Dom Bosco de visitar os meninos no local de trabalho e pedir contratos escritos de seus empregadores” (Petitti, 97).
Em seu tempo, as crianças, adolescentes, jovens e adultos, trabalhavam 16 horas seguidas e até mais. Não havia reconhecimento dos direitos humanos e sociais. Muitos morriam de graves doenças pulmonares. Outros, de fome e frio. Não havia salário e a remuneração dependia do interesse do patrão. Tal situação ficou de tal modo impregnada em Dom Bosco que passou a tomar todo o seu tempo e gastos de energia com a preocupação intensa de ajudar aqueles meninos, sem qualquer amparo ou perspectivas de vida e vida em abundância.

3 – Da crise ao “O click”

Dom Bosco percebeu que o Estado, as estruturas paroquiais da época, as práticas pastorais do clero mais velho e também do Colégio Eclesiástico eram incapazes de resolver a problemática social vivida pelos jovens.
Assim que foi encarregado, por Cafasso, de visitar as prisões, teve a oportunidade de, pela primeira vez, se defrontar com a condição alarmante e lamentável de muitos jovens, ali detidos. Este contexto doloroso para a sociedade é devastador para seu coração. Dom Bosco encontrou nas prisões de Turim os jovens condenados à morte lenta e ficou perturbado. Ele mesmo relata essa experiência:
“Lá pude verificar como é grande a malícia e a miséria dos homens. Ver turmas de jovens, de 12 e 18 anos, todos eles sãos, robustos, e de vivo engenho, mas sem nada fazer, picados pelos insetos, à míngua de pão espiritual e temporal, foi algo que me horrorizou […]. Qual não foi, porém, minha admiração e surpresa quando percebi que muitos deles saíam com firme propósito de vida melhor e, não obstante, voltavam logo à prisão, da qual haviam saído poucos dias antes…” (MO, 2005).
Podemos imaginar e até sentir a dor de Dom Bosco ao se deparar com essa realidade juvenil. Para ele, que se via inclinado a cuidar dos jovens, vê-los padecer, sozinhos e sem perspectivas causava-lhe um desconsolo imensurável. Aqui se deu sua grande crise: “Se tivessem lá fora um amigo que tomasse conta deles, os assistisse dos instruísse… não se poderiam manter afastados da ruína ou pelo menos não diminuiria o número dos que retornam ao cárcere? ” (MO, 2005).
Dom Bosco começou a descobrir, dessa forma, adolescentes e jovens migrantes, vítimas da fome, do analfabetismo, da exploração sexual, do trabalho escravo, do abandono familiar e social. Eram meninos pobres e sem a chance de serem reconhecidos como cidadãos e cristãos, que viviam nas periferias de Turim, expostos a todo tipo de perigos.
Percebemos que Dom Bosco foi interpelado, nas entranhas, pela realidade dos jovens de Turim de sua época a questionar a sua própria vida e a voltar a responder à pergunta central de sua existência: O que Deus quer que eu seja? Que eu faça?
Em Turim, Deus preparava ‘o novo’ na vida de Dom Bosco e, por meio da experiência da dor, pelo sofrimento dos jovens pobres e abandonados, nasce a esperança de ajudar a mudar a realidade em que vivia.

3.1 A exemplo de Jesus

Assim é possível perceber que nada foi acidental na vida de Dom Bosco. Ele não escolheu os jovens mais pobres somente porque sentiu pena. O que Dom Bosco sentiu foi compaixão evangélica. A compaixão tem como modelo o próprio Jesus. Segundo o evangelho de Mateus, certa vez, Jesus saiu da cidade de Jericó e encontrou um grupo de cegos que gritava por Ele, pedindo auxílio: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós” (Mt20,31). Jesus para diante deles e sente compaixão daquelas pessoas colocadas à margem de tudo, até mesmo da vida.
A partir desse sentimento empático, que consiste em sentir com o outro a sua cegueira e exclusão, Jesus se coloca no lugar daqueles que gritam. Então, movido por esse sentimento Ele os cura.
Lucas nos apresenta, também, outro fato significativo sobre a compaixão quando narra que Jesus passava pela cidade de Naim e, de repente, apareceu uma multidão que levava o morto para sepultar. Acontece que era um filho jovem de uma mulher viúva. As viúvas eram abandonadas por todos e não tinham ninguém por elas, a não ser os filhos, e essa tinha perdido seu filho único. A mulher chorava e se lamentava. Jesus viu tudo isso é “encheu-se de compaixão por ela” (Lc 7,33ss), e ressuscitou o morto. Como, acima, verifica-se um sentimento de quem se coloca no lugar do que sofre e age para salvar.
Dom Bosco foi movido por essa compaixão. Ele começou a ver os jovens nas terríveis prisões de Turim, nas praças, nos telhados das casas limpando chaminés, correndo até o perigo de morrerem asfixiados, durante as limpezas; “jovens que faziam as belas roupas dos nobres, mas viviam com trapos; jovens ainda que vendiam pão nas padarias, mas não tinham o que comer; jovens que trabalhavam nas fábricas de couro, nas construções dos edifícios e não tinham sequer onde morar” (Mendonça, 2008).
Tudo isso, Dom Bosco observou e foi movido pela compaixão. De um lado estava a própria experiência de menino, de adolescente, lutando para sobreviver, arriscando tudo para conseguir estudar e realizar seu sonho. De outro, estavam aqueles meninos abandonados por todos. Ele sabia muito bem o significado das dores daqueles jovens. Por isso, sua compaixão foi imensa. Devia decidir-se. Sem vacilar, optou pelos jovens pobres e abandonados. Estava ali o verdadeiro e mais profundo sentido de sua vida e missão. O “click” que sempre buscou e que ao tempo de Deus foi revelado.
Dom Bosco, dessa forma, sentia-se participante do mistério da salvação. Ajudando os jovens pobres e abandonados sentia que estava ajudando a completar o que faltava à crucificação de Jesus. Assim como o Bom Pastor cuida de suas ovelhas e vai atrás da ovelha que se perdeu, ele também deveria ir atrás, cuidar, acolher e educar os jovens pobres abandonados. Eis o seu lema sacerdotal, “da mihi animas cetera tole”, acontecendo diante de seus olhos e possibilitando a graça de muitos jovens terem suas vidas restauradas, por meio de uma vida digna, verdadeiro sinal da ressurreição do Senhor para todos.

3.2 A resposta

Dom Bosco se perguntava se poderia fazer alguma coisa por esses jovens. Depois de conversar com padre Cafasso, estabeleceu o plano de começar a reunir os jovens e cuidar deles. Evidencia-se assim sua metodologia e instrumental de seu discernimento a fim de descobrir e fazer a vontade de Deus em sua vida: estar atento à realidade, captar os sinais dos tempos, pedir conselho a quem os pode dar e, sobretudo, apoiar-se na graça divina e na proteção materna de Maria.
Percebemos aqui, que Dom Bosco se coloca como apóstolo autêntico, pois se preocupa em não confundir seus próprios desejos, ainda que generosos, com a vontade de Deus. O diálogo entre ele e padre Cafasso é um dos pontos culminantes de sua vida espiritual. Por essa razão, recomendará sempre aos jovens que recorram de boa mente e de maneira estável a um guia confiável e estável, ou seja, trilharem esse caminho da procura da vontade de Deus como ele mesmo o fez.
Nas notas históricas de 1862, Dom Bosco, descreve os inícios do Oratório como resposta à situação de risco por causa da falta da instrução religiosa:
“A ideia dos Oratórios surgiu de minhas visitas frequentes às prisões da cidade. Nesses lugares, aonde haviam desembocado os fracassos espirituais e materiais, encontravam-se muitos jovens na flor da juventude, com mentes despertas, corações sadios, que bem podiam ser consolo das famílias e o orgulho da pátria. Contudo, estavam ali detidos em estado de degradação e condenados pela sociedade… a experiência também demonstrava que, se fossem ajudados aos poucos a perceberem sua dignidade humana, muitos deles mudariam de conduta, mesmo estando na prisão, e, que se fossem soltos viveriam de tal modo que nunca mais teriam que retornar…
Para comprovar essa percepção, iniciamos a dar instrução religiosa adequada nas prisões da capital, e pouco mais tarde, na sacristia da Igreja São Francisco de Assis; assim começaram as reuniões aos domingos e dias festivos no Oratório. Os encontros eram abertos aos jovens saídos da prisão e aos que, durante a semana, se reuniam pelas praças e ruas, como também aos que estavam nas fábricas… Foi em 1841 que isso começou…” (Braido,1862).
Dom Bosco indica, assim, que os contatos com os jovens em situações de risco se deram nas prisões. O oratório começou com a instrução religiosa dos jovens que saíram da prisão e que perambulavam pelas praças ou que estavam empregados nas fábricas (Lenti,2012).
A segunda conversão de Dom Bosco, fruto do seu processo de discernimento, o levou ao conhecimento da categoria de jovens que dedicaria sua vida e missão. Surge assim a parcela do carisma salesiano na Igreja: o cuidado da juventude.

4- Diálogo eclesial

Dom Bosco, foi um homem além de seu tempo e toda essa sua preocupação com os jovens mais pobres, dos anos 1800, foi um percurso que a Igreja também viveu a partir, sobretudo, do advento do Concílio Vaticano II.
No dia 16 de novembro de 1965, ao findar o Concílio Vaticano II, alguns bispos celebraram uma missa nas catacumbas de Santa Domitila e firmaram o pacto chamado, “O Pacto das Catacumbas”.
O Papa João XXIII falou da importância da pobreza, que não obteve forte repercussão conciliar de modo a entrar explicitamente nos documentos do concílio. A partir da segunda sessão, vendo que a Igreja para seguir Jesus Cristo radicalmente precisava viver a pobreza, ou seja, não a miserabilidade, mas, sim, se contentar com aquilo que é o necessário para viver, os bispos começaram a perceber que muitas coisas passavam da essencialidade. E assinaram um documento, sobretudo, os bispos latino americanos, comprometendo-se a ter os pobres como aqueles mais importantes em sua vida pastoral. E, passaram e ler o Concílio na linha dos mais pobres.
Nesse momento histórico, cerca de 500 bispos assumiram a preocupação e tomaram o compromisso de se pensar e ajudar os pobres a saírem da situação de miséria e exclusão social. Não se tratava apenas de fazer para, mas, também, e principalmente, de fazer com, ensinando-os e instruindo-os a serem instrumentos de transformação da sociedade.
A Igreja dos pobres não é aquela que apenas vai aos pobres, mas também, se desveste das atitudes de poder e dominação até nas próprias vestes, residências, meios de transportes e assim, os bispos e sacerdotes participarem na vida do povo.
Medellin, foi o Concílio Vaticano II da América Latina e do Caribe, o verdadeiro Pentecostes. Aqui se fez a opção pelos pobres, pelas comunidades e pela militância a partir da fé. (Medelin, 1968). A Igreja começa a ter um novo rosto, marcando sua presença nos problemas do mundo, denunciando as injustiças e sendo voz dos menos favorecidos.
Em Puebla, a Igreja ensina a todos a sua própria dignidade de filhos de Deus. Esta verdade se realiza, sobretudo, por meio da opção preferencial pelos pobres, nascida anteriormente, mas, será em Puebla que irá abranger todas as dimensões da ação pastoral da Igreja do Brasil. Aqui a linha metodológica pastoral da igreja, consistia em buscar respostas para operacionalizar a opção pelos pobres por meio de uma libertação integral da pessoa humana em crescente comunhão e participação (cf. Libânio, 1979).
Santo Domingo, embora com menor vigor, continua falando da necessidade da opção pelos pobres diante do empobrecimento e da agudização da brecha entre ricos e pobres, ao dizer que “evangelizar é fazer o que Jesus Cristo fez, quando mostrou na sinagoga que veio para ‘evangelizar’ os pobres (Lc 4,18-19)”, e continua afirmando:
“Esta é a fundamentação que nos compromete numa opção evangélica e preferencial pelos pobres, firme e irrevogável, mas não exclusiva e nem excludente, tão solenemente afirmada nas Conferências de Medellín e Puebla… Descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (Mt 25,31-46) é algo que desafia todos os cristãos a uma profunda conversão pessoal e eclesial” (Santo Domingo, 1992).
Conferência de Aparecida partiu da premissa de que “A opção pelos pobres é uma das características que marcam o rosto da Igreja latino-americana e caribenha… Com efeito, é uma contradição dolorosa que o continente de maior número de católicos seja também o de maior iniquidade social” (Aparecida, 2007).
É um desafio à credibilidade no anúncio do evangelho. Exige-se uma grande firmeza no anúncio do evangelho e em suas imprescindíveis consequências para toda pessoa crente, como também “uma grande dose de humildade para reconhecer nossas próprias deficiências e limitações e entrar em diálogo com pessoas de outros horizontes para buscar unir-se em uma tarefa que ‘convida a todos’ na busca da justiça social e no respeito à liberdade da pessoa humana” (Aparecida, 2007).
A eleição do Papa Francisco, latino americano, “eclesializou” institucionalmente a opção pelos pobres para toda a Igreja. Não sabemos se ele conheceu o pacto das catacumbas, mas, ao assumir o nome Francisco, afirma que sua escolha se deu exatamente para que não se esquecesse dos mais pobres. Para ele, “estar ao lado dos pobres é viver plenamente o evangelho” (Francisco, 20016).
Ao lermos a Evangelii Gaudium, percebemos que Francisco apresenta, como primeiro horizonte essencial da Igreja, a opção pelos pobres, e seus gestos e palavras caminham nessa direção. Afirma querer uma “Igreja pobre para os pobres” (EG, 2013). Francisco faz parte de uma herança do pacto das catacumbas, ele tem suas raízes fincadas em uma Igreja atenta aos mártires, à luta pela justiça e que se fez pobre com os pobres assim como Jesus Cristo.
Francisco, nos mostra, que se a Igreja é “povo de Deus”, como é afirmado na Lumen Gentiun, a opção pelos pobres se concretiza numa Igreja servidora, encarnada na história, na participação e comunhão de todas as pessoas como verdadeiras portadoras de uma esperança escatológica que define a libertação da pessoa inteira e de todas as pessoas.
O Papa Francisco, afirma que a primeira atenção a ser dada à pobreza é de tipo assistencial. Mas, a ajuda não pode ficar apenas nisso, é preciso traçar caminhos de promoção e integração à comunidade tirando do pobre “o rótulo de eterno marginalizado” (Francisco, 2015).
Em 2015, no encontro com os salesianos de Dom Bosco, as Filhas de Maria Auxiliadora e toda a Família Salesiana, o Papa Francisco, ressaltou um aspecto importante da vida e vocação de Dom Bosco como sacerdote dos jovens, principalmente dos mais pobres:
“Ele realizou-o com firmeza e constância, entre obstáculos e dificuldades, com a sensibilidade de um coração generoso. Não deu um passo, não proferiu uma palavra, não lançou mão a um empreendimento que não tivesse em vista a salvação da juventude… Realmente, ele preocupou-se de modo exclusivo às almas» (Constituições salesianas, n. 21). O carisma de Dom Bosco leva-nos a ser educadores dos jovens, pondo em prática aquela pedagogia da fé que se resume assim: «Evangelizar educando e educar evangelizando» (Diretório geral para a catequese, n. 147). Evangelizar os jovens, educar os jovens a tempo inteiro, começando pelos mais frágeis e abandonados, propondo um estilo educativo feito de razão, religião e benignidade, universalmente estimado como «sistema preventivo». Aquela mansidão tão forte de Dom Bosco, que certamente tinha aprendido da sua mãe Margherita. Mansidão e ternura forte! Encorajo-vos a prosseguir com generosidade e confiança as múltiplas obras a favor das novas gerações: oratórios, centros juvenis, institutos profissionais, escolas e colégios. No entanto, sem esquecer aqueles aos quais Dom Bosco chamava «meninos de rua»: eles têm muita necessidade de esperança, de ser formados para a alegria da vida cristã” (Francisco, 2015).
Podemos perceber que o processo de discernimento de Dom Bosco que o levou à sua segunda conversão, isto é, à decisão de entregar a sua vida pela salvação dos jovens mais pobres e abandonados, caracterizou o “jeito de Dom Bosco” de ser Igreja e, como seus filhos e filhas, somos chamados(as), no hoje da história, a continuar essa linda missão.

4- Considerações Finais: O legado

Papa Francisco, nesse mesmo encontro afirma que: “Dom Bosco foi sempre dócil e fiel à Igreja e ao Papa, seguindo as suas sugestões e indicações pastorais. Hoje a Igreja dirige-se a vós, filhos e filhas espirituais deste grande santo, e de modo concreto convida-vos a sair, a ir sempre de novo para encontrar os adolescentes e os jovens lá onde eles vivem: nas periferias das metrópoles, nas áreas de perigo físico e moral, nos contextos sociais onde faltam muitos bens materiais, mas onde faltam sobretudo o amor, a compreensão, a ternura e a esperança. Ir ao seu encontro com a paternidade transbordante de Dom Bosco. O oratório de Dom Bosco nasceu do encontro com os jovens de rua e, durante um certo tempo, viveu itinerante entre os bairros de Turim. Espero que possais anunciar a todos a misericórdia de Jesus, fazendo «oratório» em todos os lugares, especialmente nos mais impenetráveis; levando ao coração o estilo oratoriano de Dom Bosco e olhando para horizontes apostólicos cada vez mais amplos. Da raiz sólida que ele plantou há duzentos anos no terreno da Igreja e da sociedade germinaram muitos ramos: trinta instituições religiosas vivem o seu carisma para compartilhar a sua missão de levar o Evangelho até aos confins das periferias. Além disso, o Senhor abençoou este serviço suscitando no meio de vós, ao longo destes dois séculos, uma numerosa plêiade de pessoas que a Igreja proclamou santos e beatos. Encorajo-vos a prosseguir ao longo deste caminho, imitando a fé de quantos vos precederam”.
O carisma salesiano é um dom do Espírito à Igreja, em favor de determinados destinatários. A vocação Salesiana, mais do que nosso privilégio, é direito da juventude, especialmente da juventude mais pobre e necessitada: o Espírito nos chamou para ela e nos enviou para evangelizá-la.
Diante disso, examinar a localização exata da nossa presença apostólica e aprofundar o conceito de evangelização na escola de Dom Bosco, com suas implicações atuais, torna-se imperativo. Trabalho urgente e complexo, que reclama de nós uma consciência social e uma visão esclarecida da nossa tarefa para a justiça no mundo.
Sabemos o quanto é fácil fazer demagogia quando se fala de escolher os pobres, e, que está na moda uma certa tentação de políticos quando se afirma que a evangelização implica também na promoção humana e libertação das injustiças sociais. Mas, é necessário, afinal, correr algum risco, como Dom Bosco correu, como Madre Mazzarello correu, como Jesus Cristo correu e sofreu a morte violenta da cruz. Seria muito tranquilo carregar, no coração, nada menos do que um carisma e nunca sentir a novidade dinâmica e incômoda de ser interpelado pelos antigos e novos gritos da juventude pobre e abandonada.
Com Dom Bosco não foi assim! Foi em seu coração que primeiramente vibrou a corda da melodia de sua vida “da mihi animas cetera tole”. E, se hoje estamos aqui é para darmos continuidade a essa grande e bela sinfonia, que é gratuitamente dom de Deus.
Somos chamadas a seguir os passos de Dom Bosco, conhecer a realidade, nos deixar interpelar pelos gritos dos jovens pobres, andar com eles, ser a sua voz, ouvir as mediações, rezar, prestar atenção nos sonhos e confiar inteiramente em Nossa Senhora Auxiliadora. Só assim, a seu tempo, tudo compreenderemos e seremos resposta credível do amor de Deus aos jovens e a garantia da perpetuação de nosso carisma na Igreja.

Façamos como Dom Bosco fez! “Quereis fazer-me coisa divina? Educai a juventude”. (Dom Bosco)

Por Noviça Celene Couto Rodrigues

 

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